UNDB

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Colação de Grau 2016.2

26.12.16

Uma parte de mim

Ceres Murad, Reitora da UNDB

“ Uma parte de mim é todo mundo, outra parte é ninguém, fundo sem fundo.”

O gênio que escreveu esses versos nos deixou semanas atrás. Com ele, morre parte da alma de Son Luís, como ele a chamava. Ferreira Gullar, exilado na Argentina ou no Rio de Janeiro, sempre esteve maranhense.

O nosso poeta nos defronta com a complexidade da alma. Assumir essa complexidade, tê-la como ponto de vista, ponto de partida para ver o mundo é tarefa nada simples. Mas a única possível - uma questão de vida ou morte – afirma ele.

Nos momentos em que nos encontramos nas esquinas da vida – como este momento é para todos vocês, queridos formandos - é preciso meditar sobre o traçado que queremos dar à nossa história, face a face com a estranheza das inúmeras opções de ser que nos aparecem – à frente, vindas de fora, ou surpreendentemente, vindo de dentro .

Não é só o mundo que nos confunde. Sentimentos e desejos brotam sem pedir licença. Olhá-los de frente , analisá-los, imaginar aonde esse galho - esse ganho -me leva é esculpir-se na arte da vida.

“Uma parte de mim é multidão, outra parte estranheza e solidão. “

Como enfrentar a multidão sem fortalecer-se na solidão que permite contemplar casos e pessoas que nos acenam à beira da nossa estrada, oferecendo sedutoramente este ou aquele caminho? E pasmar, ruminar para engolir ou cuspir.

Quantos fáceis caminhos nos aparecem, sedutores? Quantos caminhos nos parecem, à primeira vista, espinhosos e rudes, mas capazes de nos levar a conquistas sólidas?

Saber escolher dentre as inúmeras opções que o mundo nos oferece é tão fundamental quanto saber ouvir os anseios da alma. Esse é um bom balizador para escolher um fazer de labuta diária que nos trará o pão de cada dia -  essa decisão pode trazer junto o paraíso ou a desolação.

Mas... essa não é tarefa fácil. A vida não é maniqueísta, nos ensina Gullar em seu poema.

“Uma parte de mim pesa, pondera, outra parte delira. “

Lutar pelo sustento é licito. Sonhar sonhos idealistas também. Realizá-los  justifica uma existência. Fazê-lo enquanto se ganha o pão de cada dia é o desfrute máximo da alma.

“Uma parte de mim é permanente outra parte se sabe de repente. “

Assumir o  permanente de uma profissão de todo dia não exclui deixar a porta e a mente abertas para “saber-se de repente”. Isso exige engenho e arte no oficio de pensar.

Uma parte de mim...

Assumir a dualidade da nossa existência – nossa e do mundo, é aceitar que a ambiguidade não está no outro, mas dentro de cada um. Só os espíritos muito estreitos não se questionam, não reconhecem as forças contraditórias que se movem sob a própria pele , apontando caminhos diversos, igualmente possíveis, e defensáveis.

A poesia e o poeta têm como dever de ofício conciliar as aparentemente inconciliáveis contradições do espírito, abrigar dentro da métrica de um verso toda a angústia das almas que se pensam e acolher todo aquele que se dedique a descobrir dentro de si próprio o seu oposto.

Esse exercício é obrigatório - saber conviver com a nossa antítese, sob pena de esfolar a própria alma na angústia de não aceitar em si o contraditório, o diverso, o dissonante.

Aceitar em si a dualidade é assumir também a  diversidade do outro, das opiniões, credos, visões de mundo e da  vida.

O maniqueísmo – o julgamento do bem e do mal... O maniqueísmo está vivo, no poder dos grandes Estados, nos grupos radicais que proliferam ao redor da Terra, mas também ali ao lado, na mesa de bar, onde se exclui o  diferente pela impossibilidade de apaziguar dentro de si a sensação da dúvida, da incompletude.

O que mais seria o maniqueísmo senão um analgésico para a alma  daquele que não é forte o suficiente para apaziguar-se  com o oposto que vive dentro de si mesmo?

A política falha, mas a poesia pode.

Aceitar o plural é inserir-se na dinâmica que move em direção a um mundo mais humano e mais pacífico. Reconhecer-se dual é reconhecer-se humano, vivo, pulsante, é ser - o primeiro passo para construir o inclusivo, diverso e belo lugar onde queremos viver.

Como ensina Gullar,

“Traduzir-se uma parte

na outra parte

— que é uma questão

de vida ou morte —

será arte?"